A riquezado desapego
Mário Frigéri*
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Resumo
Ser desapegado não é o mesmo que ser pródigo. O pródigo esbanja sua riqueza de forma inconsequente e pode um dia ficar na miséria. O desapegado, ao contrário, pode permanecer na posse de seus bens a vida toda, sem no entanto sentir-se preso a eles de forma egoísta e limitante.
Palavras-chave
Desapego; impermanência; transitoriedade.
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Um conto hindu
Há um cativante conto hindu que nos ensina o quanto é relativa a posse dos bens materiais pela qual os homens tanto se empenham neste mundo. Na tradição religiosa do hinduísmo, que tem quase um bilhão de adeptos no mundo, Shiva é um dos principais deuses, o qual, juntamente com Brama e Vixnu, forma a trindade divina dessa religião. É objetivo de todo devoto, por meio de uma união mística com Shiva, libertar-se da lei da reencarnação e, por conseguinte, do apego a todas as coisas terrenas. Vamos ao conto.
Certo mestre hindu chegou aos arredores de determinada aldeia e sentou-se debaixo de uma árvore para dormir. Chega então correndo um habitante daquela aldeia e lhe diz, quase sem fôlego:
– Aquela pedra! eu quero aquela pedra!
– Mas que pedra? pergunta-lhe o mestre.
E o aldeão responde:
– Ontem à noite vi meu Senhor Shiva num sonho e ele me disse que eu viesse aos arre[1]dores da aldeia, ao pôr do sol, onde deveria encontrar um hindu que me daria a pedra mais preciosa do mundo, a qual me faria rico para todo o sempre.
Então, o velho peregrino remexeu na sua trouxa, tirou dela uma pedra preciosa, estendeu-a ao aldeão e disse:
– Provavelmente é desta pedra que Shiva lhe falou. Encontrei-a numa trilha da floresta, alguns dias atrás. Pode ficar com ela, pois para mim é indiferente que permaneça comigo.
O aldeão contemplou maravilhado aquela preciosidade. Era um diamante, talvez o maior jamais visto neste mundo. Pegou, pois, a gema e foi-se embora.
Mas, quando veio a noite, ele se virava e revirava no leito de um lado para o outro sem conseguir dormir. Então, rompendo o dia, voltou correndo ao mestre hindu e o acordou tão rápido quanto pôde.
– O que você deseja agora? perguntou o mestre.
– Eu não quero mais a pedra. Eu quero que me dê essa riqueza que fez com que você se desfizesse daquele diamante com tanta facilidade!
Desapego
É claro que tudo nesta vida precisa ser visto sob a óptica do discernimento. Ser desapegado não é o mesmo que ser pródigo. O pródigo esbanja sua riqueza de forma inconsequente e pode um dia ficar na miséria. O desapegado, ao contrário, pode permanecer na posse de seus bens a vida toda, sem no entanto sentir-se preso a eles de forma egoísta e limitante.
Aprendemos na doutrina do Consolador (e o que se segue é a interpretação disso) que só pertence realmente ao homem o que ele pode levar consigo deste mundo quando morrer. Do que ele encontra ao nascer e deixa ao desencarnar, apenas desfruta enquanto aqui permanece.
Portanto, na realidade, o homem nada possui do que é de uso do corpo, mas apenas o que é de uso da alma, como a inteligência, os conhecimentos e as qualidades morais. Isso é o que ele traz e leva consigo e o que ninguém lhe pode tirar. Depende dele ser mais rico ao partir deste mundo do que ao chegar a ele, e a sua posição futura, dentro da lei da reencarnação, depende daquilo que ele tiver adquirido em bens eternos e que tenham sido agregados a seu Espírito.
Os bens da Terra pertencem a Deus, que os distribui a seus filhos, não sendo o homem senão usufrutuário ou administrador transitório desses bens. Tanto esses bens não constituem propriedade pessoal, que Deus muitas vezes anula todas as pretensões humanas e faz a riqueza escoar por entre os dedos do homem sem que ele o queira.
O desapego aos bens terrenos consiste em apreciar a riqueza em seu justo valor, em saber servir-se dela, utilizando-a em benefício dos outros e não apenas em benefício próprio, em não sacrificar por ela os interesses da vida futura, e em perdê-la sem murmurar, caso seja da vontade de Deus que isto aconteça.
O Senhor não ordena a ninguém que se despoje do que possua, condenando-o, assim, a tornar-se um mendigo voluntário, porque aquele que assim fizesse iria tornar-se uma carga para a sociedade. Adotar tal procedimento seria compreender mal o desprendimento dos bens terrenos, portar-se com um egoísmo de outro gênero, porque o indivíduo estaria se esquivando da responsabilidade que a riqueza faz pesar sobre aquele que a possui.
Finalidade da riqueza
Deus concede a riqueza àquele que bem lhe aprouver, a fim de que seja administrada em proveito de todos. Assim, o rico tem uma grande missão, que ele pode embelezar e tor[1]nar proveitosa a si e aos outros. Rejeitar a riqueza quando Deus a dá é renunciar aos benefícios do bem que se pode fazer com ela, administrando-a com sabedoria. Saber passar sem ela quando não a tem, saber em[1]pregá-la bem quando a possui, e saber sacrificá-la quando necessário, é agir de acordo com os desígnios de Deus.
Entende mal o Cristo aquele que acha que o rico deve distribuir tudo o que tem aos pobres e ficar pobre. Pobreza não recomenda ninguém. O que o rico deve fazer é não se tornar escravo da riqueza e aplicá-la, com inteligência e equilíbrio, em benefício da sociedade.
Eis o que deve dizer aquele em cujas mãos venha a cair o que no mundo se chama uma boa fortuna:
– Meu Deus, tu me destinaste um novo encargo: dá-me a força e a sabedoria de desempenhá-lo segundo a tua santa vontade.
A fórmula mágica, portanto, para os que querem ser vencedores também nesse campo da ação humana, encontra-se na compreensão de que a riqueza do desapego está no desapego da riqueza.
Paz de espírito
E para coroar este breve arrazoado sobre o desapego, vamos acrescentar-lhe mais um conto:
Certo negociante muito rico costumava ir ao ancoradouro de sua cidade observar os pescadores quando voltavam da pesca. E sempre via certo pescador que diariamente retornava do mar com um pequeno número de peixes muito apreciados no mercado. Um dia resolveu perguntar-lhe quanto tempo levava para pescá-los.
– Pouco tempo, respondeu o pescador.
Em seguida perguntou-lhe por que não permanecia mais tempo no mar para pescar mais peixes e vendê-los no mercado.
– Porque já tenho o bastante para atender as necessidades imediatas de minha família, disse o homem.
E o negociante voltou à carga, indagando-lhe o que fazia com o resto de seu tempo.
– Durmo até tarde, pesco um pouco, brinco com meus filhos e netos, tiro um cochilo à tarde com minha esposa, vou todas as noites à aldeia, bebo um pouco de vinho e toco violão com meus amigos. Levo uma vida cheia e ocupada, senhor.
– Olhe – disse o negociante –, eu sou um empresário muito rico e poderia ajudá-lo. Você deveria passar mais tempo pescando e, com o lucro, comprar um barco maior. Com a renda de sua pesca poderia comprar vários outros. No fim, teria uma frota de barcos pesqueiros. Em vez de vender pescado a um intermediário, venderia diretamente a uma indústria processadora e, no fim, poderia ter sua própria indústria. Você controlaria o produto, o processamento e a distribuição. Deixaria esta pequena aldeia de pescadores e mudaria para a capital, estendendo sua empresa para as grandes cidades deste país e depois para o mundo.
– Mas, senhor, quanto tempo isso levaria?
– Uns quinze ou vinte anos.
– E depois, senhor?
– Depois, você poderia abrir o capital de sua empresa ao público e ficar muito rico, pois ganharia milhões.
– E depois?
– Depois, você se aposentaria. Com suas contas nos bancos abarrotadas, mudaria para uma pequena aldeia costeira, onde dormiria até tarde, pescaria um pouco, brincaria com seus filhos e netos, tiraria um cochilo à tarde com sua esposa, iria à aldeia todas as noites, onde poderia tomar vinho e tocar violão com os amigos.
E o singelo pescador lhe respondeu, pondo fim ao diálogo:
– Mas, senhor, tudo isso eu já estou fazendo agora, sem precisar dar volta ao mundo.
Fala o Consolador
Para resumir tudo o que aqui foi exposto, basta meditar sobre o conteúdo da questão 922 de O livro dos espíritos, ¹ de Allan Kardec, em que o mestre de Lyon explana o tema e faz a seguinte indagação às Entidades Superiores:
A felicidade terrestre é relativa à posição de cada um. O que basta para a felicidade de um, constitui a desgraça de outro. Haverá, contudo, alguma soma de felicidade comum a todos os homens?
E as Vozes do Céu respondem:
“Com relação à vida material, é a posse do necessário. Com relação à vida moral, a consciência tranquila e a fé no futuro.
- N.A.: Autor, escritor, poeta e YouTuber compromissado com a Doutrina Espírita – Campinas (SP).
REFERÊNCIA:
¹ KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Guillon Ribeiro. 93. ed. 11. imp. (Edição Histórica). Brasília, DF: FEB, 2022.