Revista Reformador

As comunicações dos Espíritos e o controle da razão

“Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm ter convosco cobertos de
peles de ovelha e que por dentro são lobos rapaces.” (Mateus, 7:15.)¹

J. Carlos Silveira*
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Resumo

O controle básico das comunicações dos Espíritos é o da razão. Tudo o que vem do Mundo Espiritual, versando sobre os princípios da Doutrina Espírita, deve ser alvo de um raciocínio rigoroso, de modo a serem recebidas apenas as teorias que estão de acordo com a lógica e o bom senso. Tal recepção, porém, dá-se em caráter temporário, porque o novo conteúdo só é incluído entre os alicerces do Espiritismo após passar pela concordância da generalidade dos Espíritos. As comunicações que não se referem diretamente aos princípios doutrinários, mas são neles firmadas, podem, entretanto, ser acolhidas sem restrições, desde que apresentem objeto útil ao aprendizado do Espiritismo.

Palavras-chave

Comunicações dos Espíritos; controle; razão; princípios doutrinários; generalidade e concordância.

Temos visto na mídia certos questionamentos sobre a forma de seleção das comunicações dos Espíritos. Por que algumas são aceitas e outras preteridas? Quais os parâmetros da escolha? Até que ponto é observado o critério da generalidade e concordância no ensino, adotado por Allan Kardec para sancionar as revelações do Mundo Espiritual? pergunta-se.

A resposta para essas dúvidas está, certamente, nas diretrizes atemporais traçadas pelo Codificador sobre o assunto. Acompanhemos, passo a passo, essas diretrizes.

O controle primordial é o da razão. É preciso submeter toda teoria que vem dos Espíritos ao crivo austero do raciocínio, repelindo de imediato qualquer matéria que demonstre incoerência com a lógica e o bom senso; isso tudo sem levar em conta o nome do Espírito que a sustente.²

Com efeito, os Espíritos, ocupando vários graus de progresso, não possuem, individualmente, a posse de toda a verdade. Cada um sabe apenas o que se harmoniza com seu estágio de depuração, e muitos deles percebem as coisas até menos que nós. Há, também, os enganadores, que se apropriam de nomes respeitáveis para mais facilmente divulgar mentiras. Portanto, concebe- -se que suas ideias devam ser consideradas, de início, opiniões pessoais, sem qualquer chancela de legitimidade.³

Cuide-se, porém, que o controle da razão não se confunda com a lógica das opiniões próprias. Não é porque se concilia com o pensamento de quem a analisa que determinada teoria é suscetível de ser reconhecida. Toda opinião individual – nossa ou dos Espíritos − tem idêntico peso. Por conseguinte, tornam-se mais produtivos os esforços de interpretação quando se busca trabalhar em equipe, atrelando-se ao parecer da maioria.

O controle da razão é ressaltado, de modo singular, pelo Espírito Erasto:

Na dúvida, abstém-te, diz um dos vossos velhos provérbios. Não admitais, portanto, senão o que seja para vós de inegável evidência. Quando aparecer uma ideia nova, por menos duvidosa que vos pareça, fazei-a passar pelo crivo da razão e da lógica e rejeitai corajosamente o que a razão e o bom senso reprovarem. É melhor repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea. Efetivamente, sobre essa teoria poderíeis edificar um sistema completo, que desabaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento edificado sobre areia movediça, ao passo que, se rejeitardes hoje algumas verdades, porque não vos são demonstradas clara e logicamente, mais tarde um fato brutal ou uma demonstração irrefutável virá vos afirmar a sua autenticidade⁴ (Grifo nosso).

Identificada a razoabilidade de uma teoria, convém ponderar que, enquanto ela permanece objeto de instruções isoladas, não tem abrigo no arcabouço doutrinário, podendo ser vista tão somente como opinião individual, até que adquira o assentimento coletivo dos Espíritos.⁵

Esse assentimento é objeto da segunda fase do processo investigativo, com a aplicação do critério da generalidade e concordância no ensino,⁶ visando ao controle universal do ensino dos Espíritos.⁷

A única garantia séria do ensino dos Espíritos [assevera o Codificador] está na concordância que exista entre as revelações que eles façam espontaneamente, por meio de grande número de médiuns estranhos uns aos outros, e em diversos lugares.⁸

Kardec, entretanto, faz esta ressalva: “Compreende-se que não se trata aqui das comunicações relativas a interesses secundários, mas das que se referem aos próprios princípios da Doutrina. […]”.⁹ Logo, o critério da generalidade e concordância é circunscrito à plataforma dos princípios ou postulados doutrinários.

[…] Prova a experiência [diz ainda Kardec] que, quando um princípio novo deve ser revelado, ele é ensinado espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de modo idêntico, se não quanto à forma, pelo menos quanto ao fundo. […].¹⁰

Obtido o beneplácito da pluralidade dos Espíritos, a etapa subsequente é a da busca das consequências e aplicações do novo ensinamento. A nós compete essa tarefa.

Tal segmentação de labor afigura-se compreensível, se tivermos em conta o duplo caráter da revelação espírita: pertence ela, concomitantemente, à revelação divina e à revelação científica. Integra a revelação divina porque os pontos doutrinários básicos têm origem no ensino dos Espíritos, os quais, em nome de Deus, vêm esclarecer os seres humanos sobre as coisas que estes últimos não teriam condição de descobrir por si mesmos. E abarca a revelação científica, porque os receptores dessas comunicações não configuram seres passivos, isentados da tarefa de observar e examinar.¹¹

A revelação espírita não tem selo impositivo. Cabe aos Espíritos apontar a via das inferências que podemos extrair da observação dos fatos. Sua variedade de manifestações é o acervo de fatos que o ser humano estuda, para deduzir suas leis. Em realidade, os Espíritos que entram em contato conosco pertencem a todas as faixas evolutivas, sendo mais nossos colaboradores do que, propriamente, reveladores.¹²

Percebe-se, em todo esse procedimento de Kardec, a indicação de um roteiro seguro para o controle das comunicações espirituais:

1) Observação dos fatos.

2) Rejeição imediata das teorias que não se ajustam à lógica e ao bom senso.

3) Aceitação provisória dos conteúdos plausíveis.

4) Inserção de uma teoria nova na base doutrinária, depois de confirmada pela generalidade dos Espíritos.

5) Dedução dos efeitos e da aplicabilidade do novo ensino.

É essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos [declara Kardec], submetida, além disso, ao critério da lógica, que constitui a força da Doutrina Espírita e lhe assegura a perpetuidade. Para que ela mude, seria preciso que a universalidade dos Espíritos mudasse de opinião e viesse um dia dizer o contrário do que havia dito. […].¹³

A perpetuidade do Espiritismo − citada pelo Codificador – manifesta-se pelo caráter progressivo da revelação espírita, qual sucede com toda ciência de observação.¹⁴

Em virtude desse caráter progressivo, os Espíritos não estancaram o fluxo de seu desempenho depois do lançamento de O livro dos espíritos:

O livro dos espíritos [declara Allan Kardec em A gênese] só teve consolidado o seu crédito por ser a expressão de um pensamento coletivo geral. Em abril de 1867 completou o seu primeiro período decenal. Nesse meio tempo, os princípios fundamentais, cujas bases ele havia assentado, foram sucessivamente completados e desenvolvidos, em virtude da progressividade do ensino dos Espíritos. […].¹⁵

Graças a essa progressividade de ensino, todas as obras da Codificação – como afirma Kardec − foram redigidas segundo o Espiritismo, por estarem em conformidade com o ensino geral dos Espíritos.¹⁶

Os princípios doutrinários, por sua vez − assentes, todos eles, nas Leis da Natureza¹⁷ −, Allan Kardec os sintetizou no item VI da Introdução de O livro dos espíritos, chamando-os de pontos mais importantes da doutrina.

Dentro desse cenário de monitoramento das comunicações dos Espíritos, vale acrescer que o Codificador não se abstinha de discutir algumas teorias ainda pendentes de sanção universal.

Assim é a passagem do princípio inteligente pelos reinos da Natureza, constante em O livro dos espíritos (q. 607 e 607-a). Kardec realça a ausência de consenso entre os Espíritos sobre o assunto:

É assim […] que nem todos [os Espíritos] pensam da mesma forma quanto às relações existentes entre o homem e os animais. Segundo alguns, o Espírito não chega ao período de humanização senão depois de se haver elaborado e individualizado nos diversos graus dos seres inferiores da Criação. Segundo outros, o Espírito do homem teria pertencido sempre à raça humana, sem passar pela fieira animal. […].¹⁸

Em reforço a esses comentários de Allan Kardec, parece oportuno acrescentar o testemunho do Espírito Emmanuel.

O benfeitor dá a conhecer que os desencarnados de sua esfera de ação ainda se veem às voltas com as hipóteses, no que diz respeito às origens do Espírito, existindo no grupo dos estudiosos aqueles que se opõem às concepções da evolução do princípio inteligente.¹⁹

Em A gênese, algumas teorias são apresentadas como opiniões pessoais, enquanto esperam pela ratificação dos Espíritos; isso para que o Espiritismo não seja responsável por elas − diz Kardec.²⁰ Destaca-se, no contexto do livro, a passagem do princípio inteligente pelos diferentes graus de animalidade até chegar ao estágio de alma humana (Gênese espiritual, cap. XI, it. 23). O Codificador retoma o tema examinado em O livro dos espíritos, salientando que esse assunto provoca inumeráveis questionamentos. Outra teoria, posta a título de hipótese na obra, é a da origem do corpo humano, como se lê nos itens 15 e 16 do capítulo em referência.

Na esteira da conduta de Allan Kardec, a Federação Espírita Brasileira [FEB Editora] manteve, no bojo do livro O consolador, com nota explicativa da editora, a tese do Espírito Emmanuel sobre as almas gêmeas. ²¹ A tese de Emmanuel, mesmo que bela e construtiva, permanece pendente de homologação, visto que, introduzindo prisma sui generis à progressividade dos Espíritos, se prende, naturalmente, à questão dos postulados doutrinários.

Ainda sobre a vigilância das mensagens espirituais, cumpre ser dito, particularmente, que, estando os princípios doutrinários estabelecidos e desdobrados na Codificação Espírita, tornou-se menos árdua a tarefa de distinguir, nas comunicações dos Espíritos, as teorias que necessitem aguardar o apoio do controle universal.

No que tange ao caráter progressivo da revelação espírita, não se pode esquecer de aduzir que os Espíritos vêm descortinando aspectos múltiplos e instrutivos da vida além da morte. Os livros do Espírito André Luiz são protótipos marcantes dessa atuação.

De igual modo, insistem os Espíritos em divisar assuntos outros, de múltipla temática, abrangendo vários ângulos das dimensões filosófica, moral, religiosa, científica, histórica e social do Espiritismo. Os livros dos Espíritos Emmanuel e Joanna de Ângelis são exemplos notáveis nesse sentido.

A obra História de Joana d’Arc, ditada, por ela mesma, à médium Ermance Dufaux e publicada na atualidade de Kardec, situa-se nesse contexto de temas diversos. A respeito dessa obra declara o Codificador:

[…] O seu sucesso não diminuiu; é sempre lida com o mesmo interesse pelas pessoas sérias, partidárias ou não do Espiritismo. Essa História será sempre considerada como uma das mais interessantes e mais completas já publicadas.²²

Todas essas comunicações, estendendo-se por objetos diversificados, merecem o benefício do salutar acolhimento, se – a exemplo dos livros dos Espíritos acima referidos – estiverem apoiadas nos princípios doutrinários, oferecendo, ao mesmo tempo, subsídios valiosos para a dilatação do pensamento espírita.

Em suma, tudo isso posto e analisado, cremos poder chegar, em sintonia com Allan Kardec, ao seguinte remate:

O controle essencial das comunicações dos Espíritos é, evidentemente, o da razão. Todas as teorias relacionadas com os princípios doutrinários devem ser submetidas a um raciocínio rígido e acurado, de forma que somente aquelas que se mostram compatíveis com a lógica e o bom senso sejam provisoriamente admitidas, aguardando a anuência da generalidade dos Espíritos para integrarem a estrutura do Espiritismo.

Vale também assinalar que as comunicações não pertinentes aos fundamentos doutrinários, mas neles sustentadas, podem ser livremente aceitas, contanto que apresentem material significativo para o enriquecimento de nossos estudos da Doutrina Espírita.

N.A.: Membro do Conselho Superior da FEB. Articulista da revista Reformador. Tradutor dos livros: A história do espiritualismo, de Arthur Conan Doyle, e O elo perdido, de Leah Fox – Brasília (DF).
REFERÊNCIAS:

¹ KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 13. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. cap. 21, it. 2.
² KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 13. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Introdução, it. II – Autoridade da Doutrina Espírita.
³ KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 13. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Introdução, it. II – Autoridade da Doutrina Espírita.
⁴ KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 9. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. 2a pt., cap. 20, it. 230
⁵ KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 13. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Introdução.
⁶ KARDEC, Allan. A gênese. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 3. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Introdução.
⁷ KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 13. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Introdução.
⁸ KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 13. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Introdução.
⁹ KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 13. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Introdução.
¹⁰ KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 13. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Introdução.
¹¹ KARDEC, Allan. A gênese. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 3. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. cap. 1, it. 13.
¹² KARDEC, Allan. A gênese. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 3. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. cap. 1, it. 57.
¹³ KARDEC, Allan. A gênese. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 3. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Introdução.
¹⁴ KARDEC, Allan. A gênese. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 3. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. cap. 1, it. 55.
¹⁵ KARDEC, Allan. A gênese. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 3. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Introdução.
¹⁶ KARDEC, Allan. A gênese. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 3. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Introdução.
¹⁷ KARDEC, Allan. Obras póstumas. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 7. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. 2a pt., Constituição do Espiritismo, it. I –
Considerações preliminares.
¹⁸ KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 12. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. comentário de Kardec à q. 613.
¹⁹ XAVIER, Franciso Cândido. Emmanuel. Pelo Espírito Emmanuel. 28. ed. 9. imp. Brasília, DF: FEB, 2020. cap. 17 – Sobre os animais.
²⁰ KARDEC, Allan. A gênese. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 3. imp. Brasília, DF: FEB, 2022. Introdução.
²¹ XAVIER, Francisco Cândido. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 29. ed. 12. imp. Brasília, DF: FEB, 2021. Nota à primeira edição.
²² KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos. ano 3, n. 11, nov. 1860. Aviso. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. Brasília, DF: FEB, 2022.